O delicado momento da morte do idoso

A morte do idoso é um tema evitado por muitas famílias. O ciclo natural da vida prevê que os idosos irão, provavelmente, partir deste mundo antes dos familiares e cuidadores que os acompanham.

O momento da partida é delicado, mas não precisa ser triste. Acompanhe alguns depoimentos emocionantes.

A morte do idoso

Nesses mais de 22 anos no cuidado a idosos dependentes, 11 destes com minha querida avó Dona Benedita – conheça sua história de mais de 101 anos de vida! – e mais 11 à frente da Acvida, tenho que admitir que a morte ainda me surpreende. Infalível, inexorável, e sempre com algo a ensinar.

Já estive em vários velórios. São ossos do ofício; ou melhor, o momento derradeiro do respeitoso ofício de dedicar-se ao idoso.

Morte

Um cuidador, assim como outros profissionais de saúde, não deve almejar prolongar a vida a qualquer custo. Nesse sentido, além de dar atenção ao conforto e à segurança, o profissional deve fazer da morte do idoso algo natural, sem sofrimento, a convergência (conclusão) da vida.

Morte de idosos acima de 80 anos

Nossos próprios olhos testemunham e não nos deixam enganar: ainda são poucos os que passam (bem) dos 80, 90, ou mesmo 100 anos.

Tive o privilégio de conviver com duas pessoas que cumpriram sua missão DE MAIS DE 100 ANOS com boa qualidade de vida até às vésperas de sua morte: minha avó paterna, já citada acima, e meu avô materno, seu Hermano, que deixou este mundo na data de ontem.

Vovô e vovó foram pessoas próximas e queridas para além de qualquer vínculo familiar.

É em homenagem ao seu Hermano que resolvi reeditar este artigo, originalmente publicado em 06 de agosto de 2020.

O conteúdo a seguir é da postagem original.


A terceira idade e seus temores

Um dos velórios em que estive me chamou a atenção. Ocorreu no auge da pandemia de Covid-19, tive a felicidade de estar presente, e, com autorização da família, reproduzo um pouco do que vi abaixo.

A morte do idoso (idosa, na verdade) me chamou a atenção tanto pela serenidade dos filhos quanto pelo relato feito por um amigo da família, o senhor Hugo Studart, que capturou o momento de forma destacada e pertinente. Reproduzo seus comentários a seguir.

A morte com dignidade

(Em itálico: texto de Hugo Studart – meus comentários entre parênteses)

Compareci há pouco ao velório de dona Nazaré, mãe dos amigos Isabel e Theodoro. Um evento singular, na sala do apartamento onde morava em Brasília. Ela, deitada em sua cama dos tempos de solteira, bela relíquia, crucifixo no alto da cabeceira, duas velas ao lado, cercada dos cinco filhos, muitos netos e bisneto. Estavam todos serenos.

Falecera na noite anterior, aos 93 anos, de causas naturais e esperadas. Estava a descansar no quarto quando sua vela apagou. Então filhos e netos foram estar a seu lado. Dormiram por lá mesmo, espalhados nos sofás.

Há muito que os filhos haviam decidido que a mãe teria a graça de fazer a Grande Passagem com máxima dignidade, no lar onde morava há 60 anos. Dona Nazaré nunca gostou do ambiente de hospital. Usufruiu do direito de receber atendimento médico em casa (acompanhada desde 2014 pelas cuidadoras da Acvida).

E, ainda, teve a sorte louca de fazer a Passagem e os ritos fúnebres da forma como deve ser, seguindo a tradição mais antiga da Humanidade: na sala de visitas do próprio lar, cercada dos entes amados.

Saúde

O nascimento é o grande momento das mães. Mas a morte é o instante maior do Ser. As decisões de Isabel, Theodoro e seus irmãos merecem aplausos efusivos, ainda maiores nesses tempos nos quais a peste (Covid-19) vem maculando a dignidade dos mortos.

Em nome de suposta segurança sanitária, estão cometendo a indignidade de lançar sacos negros de carnes às covas sem os devidos ritos fúnebres, sem as honras, sem sensibilidades, muitas vezes sem testemunhas, enfim, corrompendo as sacralidades.

Estão “coisificando” a Condição Humana… (este parágrafo é longo e faz um adendo ao tema original, para lê-lo na íntegra clique aqui)

No ensaio O Narrador, Walter Benjamin reclama da frieza da morte moderna, na solidão de quartos cinzentos de hospitais. Os médicos, em nome de uma suposta ciência e da assepsia, renega o mais relevante, o Ser Humano e os anseios de sua alma.

Escreveu isso ainda na década de 1930, quando ainda não se intubava por qualquer razão, tirando o direito do passageiro de até mesmo se despedir dos entes queridos. (em alguns casos um ato necessário para a preservação da vida, mas que deve sempre prescindir de autorização dos familiares, e do respeito necessário ao se ponderar sobre a iminência da morte do idoso e das expectativas de prolongamento de uma vida que já não se sustenta de forma natural)

A perda de identidade e dos vínculos

No mesmo ensaio, Benjamin lembra que a morte sempre foi um grande momento de aspersão de sabedoria, no qual o moribundo, sabendo da aproximação de seu Grande Dia, mandava chamar a todos para se despedir.

E vinha gente de longe para prestigiar o evento, no qual o protagonista, em geral deitado na sala de visitas, tinha a chance de declamar amores, perdoar rancores, falar de dissabores, conciliar, emitir lições sobre a vida que partia… e ficavam todos atentos às suas palavras, a seu Grande Momento, pois daqueles instantes finais muitas vezes emergia sabedoria (a experiência de uma vida inteira).

Fiquei ao lado dos amigos velando Nazaré até às 20h, quando o carro da funerária chegou para levá-la. Deixei-os para que pudessem se despedir na intimidade do sangue. Amanhã terá um velório rápido numa capela do Cemitério Campo da Esperança, o maior do Distrito Federal), provavelmente vazio e frio, tal qual as autoridade sanitárias estão a exigir. Sempre com caixão fechado. Na sequência, ela será deitada à terra.

Pedi a Theodoro permissão para tecer algumas linhas sobre o velório da mãe para lembrar aos amigos como devemos honrar nossos mortos com sensibilidade. Ele agradeceu mesmo antes de ler.

Grande mulher, essa Nazaré criou filhos que a respeitam até depois da morte. Suba rápido com a Luz. E vá para uma morada de Paz.

Presença mesmo após a passagem

Nazaré era uma mulher de presença, o que ficou evidenciado pelo respeito que evoca mesmo após sua passagem.

Um último ponto, no velório, capturou os ouvidos e almas de todos, imediatamente antes da saída do cortejo. Theodoro pediu alguns minutos para citar Santo Agostinho, num texto que, pertinente ao tema morte do idoso, trago abaixo.

As palavras desaparecem nessas horas

O medo da morte

(Em itálico: texto de Theodoro Menck)

Recordo-me apenas de um episódio da vida de Santo Agostinho, que peço licença para narrar.

Santo Agostinho, não obstante tivesse muita proximidade com sua mãe, mostrou-se sereno, quase feliz, quando do enterro de Santa Mônica. Os presentes, conhecendo os fortes vínculos de Agostinho com sua mãe, estranharam suas atitudes.

Às duvidas levantadas, Santo Agostinho teria respondido que não estava triste. Não estava triste porque sabia – tinha a certeza – de que, no paraíso, voltaria a ver sua mãe. E, acrescentou, naquele dia, 50% das condições do encontro eterno haviam sido cumpridas. Faltava ainda a outra metade, a sua própria morte, após o que ninguém mais, jamais, conseguiria separá-los.

Não tenho a força da fé de Santo Agostinho, mas procuro me consolar cultivando a ideia de que, dentro de algumas décadas, voltarei a me encontrar com minha mãe.
E desta feita, o encontro será definitivo.

A morte não é nada

Theodoro finalizou recitando uma oração de Santo Agostinho, que reproduzo abaixo.

Independente de sua orientação religiosa, são palavras de sabedoria que merecem um momento de reflexão acerca do momento da morte do idoso e de qualquer pessoa que nos seja cara.

Cuidador de idoso quando o idoso faleceu

Ao final do enterro, me lembrei de uma passagem que ouvi com um professor de arquitetura, quando falava sobre o simbolismo das catedrais.

Diz-se que, durante a construção de uma esplêndida catedral europeia, ao ser indagado sobre o que fazia ao assentar tijolos, um pedreiro respondeu: “Estou construindo uma parede.

Ao seu lado, outro homem fazia a mesma atividade. Porém, ao ser questionado sobre qual era seu trabalho, sua resposta foi bem diferente: “Estou construindo um Templo.

Idosos

Que sirva de reflexão a todos aqueles que dedicam suas vidas a cuidar de idosos dependentes, que em sua gratificante e honrosa tarefa de oferecer dignidade à vida humana, veem-se às voltas com trocas de fraldas, mudanças de decúbito, e outros procedimentos corriqueiros que podem ser feitos tanto de forma mecânica, quanto à honrar a vida e a inevitável morte do idoso.

Cuidadores: ao cumprir sua nobre missão, lembrem-se sempre que o ato mais grandioso que podem executar, em seu dia a dia, é dignificar o “Templo da vida”.